15/04/2010

Retrato

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Dor. Como se cinzéis incandescentes golpeassem o fundo de meus olhos. Há dias que não a suporto e não faço idéia de qual é a mola propulsora dessa injúria. Não me tache de ignorante, pois essa não é uma patologia tratável por agentes da ciência, como médicos e psicólogos. A dor não é física; é, pela primeira vez, moral.

Concebi convivendo o teor da máxima “é fácil falar”. Difícil mesmo é ouvir e, para isso, certa brandura, maleabilidade áurea é necessária, contudo, é uma qualidade que nunca esteve em meus atributos. Anos atrás, também com convivência, aprendi que a “moleza” era coisa de gente fraca. Para mim, dever-se-ia ser de matéria mais rígida que a substância de que é configurada a vida, assim não saía arrasado de meus confrontos sócio-diversos. Agora vejo como é: dureza implica presunção, moleza sofrimento. E o equilíbrio entre os dois jeitos de ser? Assim eu nunca tentei, mas obviamente, é a única saída dessa consumpção. Sensibilidade para reconhecer e respeitar, dureza para defender e também para atacar.

Dizer o que me vem à cabeça é uma de minhas características mais peculiares e esse mundo não se decide se quer ou não ouvir a verdade. As pessoas, geralmente, prezam a veracidade dos fatos, mas quando estes podem feri-las, elas preferem distorcê-los, ou seja, dependendo do contexto, as pessoas mudam: falsidade pura. Isso não é um problema, é só não mudar. Gosto de ser eu mesmo independentemente da situação. A questão é o meu egoísmo. Faço tudo em prol de mim mesmo, mas se parar para filosofar, quem não é? Guardava meu altruísmo para os íntimos, mas percebi que há uns tempos, que nem isso mais eu faço. Finalmente descobri o dissabor das verdades. As palavras que são minhas armas são também as dos ofendidos. É necessário estar pronto para o contra-ataque e, às vezes, é reconhecendo erros que se ganha guerras. Sorte a minha que descobri que misturar alterocentrismo com egocentrismo pode dar bons resultados - sem que minha personalidade seja alterada - em relação aos convívios.

A dor da descoberta é que me inflama e esculpe os olhos. A entalhadura aos moldes construtivistas inflige dor de castigo aos prismas aprendizes. Maturidade é alcançada e exige remorso para que se sinta completa, assim as primeiras palavras do novo ser são de desculpas e o primeiro sentimento é de vergonha.

Por H. O.

09/04/2010

Boa praça

friends_talking_on_bench  Lâminas helicoidais
Descem pelos
Telhados e pelas
Sombras que
Estes fazem às
Luzes do altivo
Candeeiro central.
Correntes límpidas
Descem como
Negros fluidos,
Espessos,
Nessa projeção.
Sentam-se sob
Elas e ao som
Dos pingos nos
Nos telhados ferrosos
Os donos da
Considerada
Cafeteria, conforme
Os antigos faziam.
Abrigados,
Embriagam-se,
Testa-a-testa,
Ensimesmados,
Com léxico arejado,
Alheios à paisagem
Que encaram do
Camarote como
Qualquer tripulação.
Conforto.
Não obstante
Poltronas são chapas
Duras de concreto,
Paredes são os véus
Noturnos e os pedidos
São feitos às faces
Estranhas que trajam
Loucura.

Por H.O.

02/04/2010

Cambueira

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Sob as águas de março todo tipo de comunicação, da gritaria ao sussurro, se torna “conversa ribeira” e o advento dessas chuvas, para muita gente, contrariando o pensamento de Jobim, não é mesmo “o fim da canseira”. Agulhas d’água, vindas de um infinito turvo, banham o solo impermeável e as colinas e morros, transbordando depressões e bocas-de-lobo. As nuvens, ensimesmadas, derrubam temores diferentes a cada gota que deixam escapulir de sua introversão. Olhando todo esse mundo cinza, não há lugar para os recortes individuais da verdade de Drummond, todos enxergam, todos pensam: vai desabar.

À noite, deitado, a escuto. Visualizo a gota que não cabe lá no céu se formar e descer pelas colunas rachadas que seguram o mau-tempo. Se jogando, caindo aquém, à mercê, mas cortando os ventos, alcançam os concretos com o peso da natureza em suas pequenas dimensões. Os sons que fazem os pingos nos telhados, nos tijolos, nos pisos compõem a sinfonia do tédio. Os sóis, há dias, se contam apenas com calendário, pois este não brilha, ao menos contempla nossa pele com incômodo seco do calor veronil.

Como que torcidas, as nuvens soltam as águas em cima do mundo. Rios transbordam, vales e moradias inundam, raios e seus clarões fazem o dia visitar a noite. Árvores são empurradas e arrancadas pelas raízes aos uivos que comemoram a força dos ventos. Animais procuram abrigos e, entre eles, feliz é o João-de-barro. O solo impermeável transforma-se em correnteza que entope lama os bueiros, construções desabam, pessoas acordam desesperadas e seus choros são abafados pelo coro alto e pelo toque das gotas cadentes.

Amanhece, porém o sol ainda dorme. A lei do mínimo movimento é outorgada, contradizendo a opinião dos franceses no tempo da “belle époque” brasileira, de que nosso clima e fartura elaboram a letargia. As pessoas que não sofreram com a tempestade despertam depois de um bom sono ao canto hídrico do cair de mais água nas poças. Levantam e partem para o banho, a única chuva que podem controlar. Falam baixo e somente o necessário. Inconscientemente as cores das vestimentas mudam. Antes ébrias, agora sóbrias as vestes aderem a voga outoneira. Não é à toa que essa estação dá nome à primeira etapa da velhice, de vagar e desanimada.

Ensejo

E toca o despertador em prol do não-desperdício do dia. São dez horas e a primeira coisa que faço é ligar o computador, que não liga. Os mais modernos costumam reclamar da falta de energia, não eu. Vejo o ódio dos outros, mas percebo a situação com olhos diferentes. A modernidade chegou avassaladora e sem pedir licença fragmentou nosso mundo, nossa vida.

As brincadeiras das crianças metropolitanas são um exemplo dessa desunião. Não mais existe o pique-esconde, o golzinho, as cicatrizes, os corpos esbeltos, a diversão face-a-face. Os computadores são centros funcionais cujas pessoas podem fazer de tudo movendo apenas os dedos. Os encontros são marcados e a coletividade moderna se configura virtual. Turmas juntas, mas separadas esfriam suas relações. Depressões e inércia são aspectos do novo mundo. A preguiça, o sedentarismo assolam as crianças, cada vez mais barrigudas. Esse tipo de coisa me envelhece.

Oportunidade. É o que a falta de energia elétrica. A família se une para relembrar e rir dos acontecimentos das décadas passadas. Os amigos e os namorados se visitam e caminham, contando histórias pelas ruas de galhos secos e folhas molhadas pelo orvalho matutino. É dia de ler. Leituras físicas em que se pode sentir o cheiro, o peso, a textura dos velhos papéis são feitas e o gosto pelo contato é readquirido pelo gesto simples de passar manualmente as páginas. Escrever à luz branca do dia nublado com lápis, borracha e apontador nas mãos, desenhar os signos e reconsiderar a beleza na manuscrição dos signos. Esse era o modo de escrita dos gênios antigos. Jeito simples que deixava que o sentimento escorresse das mãos, pelo lápis, rumo às palavras.

Ótimo, mas o imediatismo e a instantaneidade exigem a alimentação da tecnodependência: energia volta e se essa crônica tiver um leitor, este saberá qual é o fim dela.

Por H.O.