02/04/2010

Cambueira

chuva-5497

Sob as águas de março todo tipo de comunicação, da gritaria ao sussurro, se torna “conversa ribeira” e o advento dessas chuvas, para muita gente, contrariando o pensamento de Jobim, não é mesmo “o fim da canseira”. Agulhas d’água, vindas de um infinito turvo, banham o solo impermeável e as colinas e morros, transbordando depressões e bocas-de-lobo. As nuvens, ensimesmadas, derrubam temores diferentes a cada gota que deixam escapulir de sua introversão. Olhando todo esse mundo cinza, não há lugar para os recortes individuais da verdade de Drummond, todos enxergam, todos pensam: vai desabar.

À noite, deitado, a escuto. Visualizo a gota que não cabe lá no céu se formar e descer pelas colunas rachadas que seguram o mau-tempo. Se jogando, caindo aquém, à mercê, mas cortando os ventos, alcançam os concretos com o peso da natureza em suas pequenas dimensões. Os sons que fazem os pingos nos telhados, nos tijolos, nos pisos compõem a sinfonia do tédio. Os sóis, há dias, se contam apenas com calendário, pois este não brilha, ao menos contempla nossa pele com incômodo seco do calor veronil.

Como que torcidas, as nuvens soltam as águas em cima do mundo. Rios transbordam, vales e moradias inundam, raios e seus clarões fazem o dia visitar a noite. Árvores são empurradas e arrancadas pelas raízes aos uivos que comemoram a força dos ventos. Animais procuram abrigos e, entre eles, feliz é o João-de-barro. O solo impermeável transforma-se em correnteza que entope lama os bueiros, construções desabam, pessoas acordam desesperadas e seus choros são abafados pelo coro alto e pelo toque das gotas cadentes.

Amanhece, porém o sol ainda dorme. A lei do mínimo movimento é outorgada, contradizendo a opinião dos franceses no tempo da “belle époque” brasileira, de que nosso clima e fartura elaboram a letargia. As pessoas que não sofreram com a tempestade despertam depois de um bom sono ao canto hídrico do cair de mais água nas poças. Levantam e partem para o banho, a única chuva que podem controlar. Falam baixo e somente o necessário. Inconscientemente as cores das vestimentas mudam. Antes ébrias, agora sóbrias as vestes aderem a voga outoneira. Não é à toa que essa estação dá nome à primeira etapa da velhice, de vagar e desanimada.

Ensejo

E toca o despertador em prol do não-desperdício do dia. São dez horas e a primeira coisa que faço é ligar o computador, que não liga. Os mais modernos costumam reclamar da falta de energia, não eu. Vejo o ódio dos outros, mas percebo a situação com olhos diferentes. A modernidade chegou avassaladora e sem pedir licença fragmentou nosso mundo, nossa vida.

As brincadeiras das crianças metropolitanas são um exemplo dessa desunião. Não mais existe o pique-esconde, o golzinho, as cicatrizes, os corpos esbeltos, a diversão face-a-face. Os computadores são centros funcionais cujas pessoas podem fazer de tudo movendo apenas os dedos. Os encontros são marcados e a coletividade moderna se configura virtual. Turmas juntas, mas separadas esfriam suas relações. Depressões e inércia são aspectos do novo mundo. A preguiça, o sedentarismo assolam as crianças, cada vez mais barrigudas. Esse tipo de coisa me envelhece.

Oportunidade. É o que a falta de energia elétrica. A família se une para relembrar e rir dos acontecimentos das décadas passadas. Os amigos e os namorados se visitam e caminham, contando histórias pelas ruas de galhos secos e folhas molhadas pelo orvalho matutino. É dia de ler. Leituras físicas em que se pode sentir o cheiro, o peso, a textura dos velhos papéis são feitas e o gosto pelo contato é readquirido pelo gesto simples de passar manualmente as páginas. Escrever à luz branca do dia nublado com lápis, borracha e apontador nas mãos, desenhar os signos e reconsiderar a beleza na manuscrição dos signos. Esse era o modo de escrita dos gênios antigos. Jeito simples que deixava que o sentimento escorresse das mãos, pelo lápis, rumo às palavras.

Ótimo, mas o imediatismo e a instantaneidade exigem a alimentação da tecnodependência: energia volta e se essa crônica tiver um leitor, este saberá qual é o fim dela.

Por H.O.

Um comentário:

  1. "Um dia de chuva é tão belo
    como um dia de sol.
    Ambos existem; cada um é como é." - Fernando Pessoa.
    São as águas de março fechando o verão. A chuva que arrasta árvores, casas, morros; é a mesma que beneficia o sono, acalma o dia, refresca o chão e o corpo.
    Só a falta de energia, independente da vontade da maioria - uns minutinhos de intervalo no vício - é onde se volta. Volta-se ao passado, descobrem-se afinidades, se aproxima de quem gosta.
    OBS: A primeira frase do texto ficou cadenciada, deliciosa de ler.
    "Animais procuram abrigos e, entre eles, feliz é o João-de-barro. (...)" - Um sorriso veio aos lábios.
    Muito bem escrito, parabéns!

    Beijo!

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