19/08/2010

Senão

Há anos não me sentia daquele jeito, mas já acabou. As pernas tremiam, no coração, o sangue parecia ter vida própria, pois o sentia dançar, os pensamentos todos nela, só nela. Às vezes, flagrava a mim mesmo com lágrimas nos olhos. Vocês sabem do que se trata, a emoção é muito forte.

Saía da casa de um amigo às 8h, após uma noite de bebedeira com chopp gratuito, petiscos e salgadinhos em miniatura. Era uma formatura de um companheiro de faculdade que nem daqui é, quase provinciano. Nessa noite, bebi, conversei e me diverti; cheguei até a jogar cartas, coisa que não me tem apreço. Não podia imaginar o que me esperava nessa manhã de quinta-feira, mas os velhos sentimentos sempre voltam.

A casa desse amigo era ao lado do local da festa, porém, a mesma terminou mais cedo do que esperávamos. Fomos a um bar, depois de uma boa caminhada trocando as pernas e marcando território lá e cá. Alguns reclamam desse atentado ao pudor e à higiene, mas na hora de lutar por banheiros públicos, esses imbecis, todos eles, somem.

No bar, pedimos uma garrafa de cerveja gelada e coletamos alguns cigarros da caixa para que eles acompanhassem a famosa loira. A conversa fluía em concordância sobre o bom e velho comunismo. Levantei-me e fui ao banheiro, normal depois de tantos copos de álcool. Lá um proxeneta me chamou a atenção. Perguntava se me conhecia de algum lugar, pois era “roqueiro”. O sujeito me encheu o saco durante a mijada a dizer que seu pai era o melhor baixista da cidade e me mostrou sua identidade que continha uma homenagem lusa e pobre ao Jimi Hendrix. O nome do infeliz era Jimi Peter.

Mais além, voltei para mesa e retomamos a conversa. Sentíamos-nos embriagados e sem vontade de beber mais. Pedimos copos de plástico para que levássemos a cerveja restante. Com eles, subimos a avenida em direção às camas, onde dormimos profundamente até às 8h. Não falo nada. O sujeito tinha que trabalhar, porém ninguém, nem o mais pobre ou burro e feio do planeta merece acordar cedo. Entretanto, conformamo-nos e disparamos à rua.

Nos separamos e eu fui para o ponto de ônibus. A condução não demorou e estava vazia, isso nunca acontece, talvez este tenha sido um sinal. Meu itinerário incluía dois terminais e três ônibus, porém uma só viagem para gastar. Desci do baú, como o ônibus é chamado pelos estudantes e logo entrei em outro, bem mais cheio e fui em pé.

O segundo terminal demorou bem mais para chegar, como se todo aparato de concreto, asfalto e ferros que caminhasse até mim. Lá é que começaram as estranhas sensações conhecidas por todos os indivíduos realizados. Mãos suavam e era como eu pudesse sentir o vento e o sol de um modo diferente enquanto o suor era transformado em sebo por sua ação. Momentos de pseudo-alívio, quase mágicos, iam e vinham, mas eu tinha que encontrá-la, antes que fosse tarde demais.

No ônibus, já a caminho de casa, me deu certo desespero, achei que não ia dar tempo; confiei, não tinha outro jeito. Consegui me sentar, fui na janela, admirando o caminho enquanto pensava. Quanto mais perto eu me aproximava mais insuportável era a sensação de perda e resolvi, depois de descer, me apressar. As pernas pareciam não responder aos meus comandos, só aceleravam, o suor escorria pela face, cabelos se arrepiavam ao sopro rebelde dos ventos; o caminho fazia-se mais longo que parecia.

Quase, foi por pouco. Com maestria, velocidade e ferocidade abri o portão defeituoso com uma só mão e tranquei-o. Invadi a casa, quase que arrombando a porta e a vi de longe, cada vez mais perto. Corri para o seu encontro, ela estava lá branca e fria, mas pensei: foda-se, vou sentar nela mesmo assim, senão cago na roupa. Devia estar sentindo a dor que as mulheres sentem no parto, sentia ela se mexer e me chutar, como se fosse criar mãos e por se fora do canal de uma vez por todas. Cantos de choro recém-nascido ecoavam por todo o recinto e eu prostrado pairava morto sobre o trono. Deu até fome.

H.O.

13/07/2010

Laborar em erro

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Naqueles dias em que a mente alcança dimensões holísticas tem início uma caminhada desagradável em busca de emprego. O balançar equilibrado da caminhada e o vacilo pendular da cabeça no passar das pernas são manifestações físicas de que há um pensamento ruminante infestando as curvas do pai dos pensamentos.

Um relógio cansado fincava seus ponteiros indicando que o dia chegava as suas 14 horas. Era uma quinta-feira de verão, o mais conturbado, climaticamente falando, que já presenciei em minhas décadas de vida. Estava num momento de revigoração pós-almoço caseiro, espremido entre as paredes resumidas de uma bóia, buscando coragem para voltar a amargar o sol de 40ºC.

A manhã foi um lapso excepcionalmente cansativo. A estafa da necessidade financeira acompanhada noites mal dormidas é instrumento inquisidor no aleijamento dos sonhos. O despertador, objeto rotineiro por qual nutro certo ódio, auxilia em meu despertar desonroso e desesperado. “Hoje eu arrumo um trabalho”, essas palavras pensadas são como miragem: corro, como o rato atrás do queijo, em sua direção, mas nunca as alcanço.

Cinco da manhã. Sem mãe, pai, filhos, família. A vida de desconforto – falta disso, daquilo e de comida – é só minha e do meu amigo estômago. Ao levantar, escovo os dentes com a higiene que a pobreza me concede. Lavo as louças, poucas, sujas de água rala de feijão e farinha. Tomo um banho, coloco minha melhor combinação de roupas – já surradas – para o dia de, quem sabe, trabalho.

Sorte

Ao menos, moro na região central da cidade, presente do meu pai, um rico decadente. A única coisa que sobrou. Com pasta e currículos nas mãos, começo a caminhada. É duro arranjar emprego, mas como sou formado em duas faculdades, esperava um pouco mais de facilidade; acredite: esse tipo de coisa não existe.

Botecos, bares, lojas de roupas, de acessórios; escolas, universidades, livrarias, sebos, shopping centers, mercados, armazéns, cooperativas de taxi, mototaxi; aeroporto, tapeçarias, padarias, açougues, brechós. Fui a todos os tipos de estabelecimento ao longo das ruelas, ruas e avenidas da região. Tudo trescalava o cheiro da esperança natimorta.

Hoje os calçados achados não suportaram a agonia de meus passos. Rasgaram-se suas laterais, deixando minha aparência surrada patética. Calos doem a tantos dias que começo a apreciar sua companhia. Sangue e suor não mais escorrem, tornaram-se carapaça brilhosa receptora de sujeira, agora o dia cambaleia de sono.

Silhuetas passam rápidas ao entardecer alaranjado, serpenteando pelo tráfego caótico do horário de pico, se dirigindo a seus carros ou pontos de ônibus. Lotação? Nem pensar. As poucas moedas que representam passagens para uns são o meu jantar. Voltei a pé, rua por rua, recolhendo gota por gota do suor vão daquele dia.

Em casa, o mofo se acumula em cogumelos que cogito comer. Panelas vazias organizadas e lavadas em cima da pia com água cortada. Roupas vão ao chão, com o que resta na caixa d’água, banho. “Janta”. Colchão. Vozes. Sono. Vozes. Despertador. Vozes. Mesa. Restaurante. Multidão. Relógio: 14h01. Sapato. Meias. Terno. Eu. Prato e talheres, minha companhia, deixo para trás. É hora de pagar a conta e voltar a trabalhar.

Por Hugo O.

04/07/2010

Fração

relogio-mural-branco-021

Nada.
Nada sou
Além de um
Extrato meu de
Mim mesmo.
Egoísmo compreendido
Na forma primordial do ser.
Sou eu o que eu penso.
Nesse segundo o que eu penso é:
Amor.

Por H.O.

02/07/2010

Significante

loveisthemovement

Soturnas são as luzes
Dançantes, variantes
Todas elas
Sob as pálpebras
Mortas de canseira
Que guardam os globos
Misóginos de claridade.
São focos de sonambulismo
Lúcido e atormentador.
É sono que não se dorme
Na ânsia de se descrever,
É desejo vicioso contido por dias
A se rastejar às roucas pela
Pauta muda e contínua e sedenta.
Ela é silente, viva com cobrança
Revolucionária* para que os velhos
Ventos atemporais retornem;
Fúria cardíaca bombeia sua pulsante
Agonia de e para ela mesma,
Que infla, se distribui e possui.
Se entregue, o jeito é escrever.

*Ver Bauhaus

Por H. O.

 

15/04/2010

Retrato

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Dor. Como se cinzéis incandescentes golpeassem o fundo de meus olhos. Há dias que não a suporto e não faço idéia de qual é a mola propulsora dessa injúria. Não me tache de ignorante, pois essa não é uma patologia tratável por agentes da ciência, como médicos e psicólogos. A dor não é física; é, pela primeira vez, moral.

Concebi convivendo o teor da máxima “é fácil falar”. Difícil mesmo é ouvir e, para isso, certa brandura, maleabilidade áurea é necessária, contudo, é uma qualidade que nunca esteve em meus atributos. Anos atrás, também com convivência, aprendi que a “moleza” era coisa de gente fraca. Para mim, dever-se-ia ser de matéria mais rígida que a substância de que é configurada a vida, assim não saía arrasado de meus confrontos sócio-diversos. Agora vejo como é: dureza implica presunção, moleza sofrimento. E o equilíbrio entre os dois jeitos de ser? Assim eu nunca tentei, mas obviamente, é a única saída dessa consumpção. Sensibilidade para reconhecer e respeitar, dureza para defender e também para atacar.

Dizer o que me vem à cabeça é uma de minhas características mais peculiares e esse mundo não se decide se quer ou não ouvir a verdade. As pessoas, geralmente, prezam a veracidade dos fatos, mas quando estes podem feri-las, elas preferem distorcê-los, ou seja, dependendo do contexto, as pessoas mudam: falsidade pura. Isso não é um problema, é só não mudar. Gosto de ser eu mesmo independentemente da situação. A questão é o meu egoísmo. Faço tudo em prol de mim mesmo, mas se parar para filosofar, quem não é? Guardava meu altruísmo para os íntimos, mas percebi que há uns tempos, que nem isso mais eu faço. Finalmente descobri o dissabor das verdades. As palavras que são minhas armas são também as dos ofendidos. É necessário estar pronto para o contra-ataque e, às vezes, é reconhecendo erros que se ganha guerras. Sorte a minha que descobri que misturar alterocentrismo com egocentrismo pode dar bons resultados - sem que minha personalidade seja alterada - em relação aos convívios.

A dor da descoberta é que me inflama e esculpe os olhos. A entalhadura aos moldes construtivistas inflige dor de castigo aos prismas aprendizes. Maturidade é alcançada e exige remorso para que se sinta completa, assim as primeiras palavras do novo ser são de desculpas e o primeiro sentimento é de vergonha.

Por H. O.