23/02/2010

Travessia

Noite.Poucos são tão íntimos da noite quanto as caravanas que cruzam o deserto.Mais próximos ainda das estrelas estão os viajantes que vagam solitários ou,quando muito, em pares.Nós fazíamos parte de uma caravana que lentamente se dissolveu na areia até que restamos apenas dois.No último dia de viagem –íamos de Trípoli até o Lago Chade- o deserto devorou os camelos.

Quando a luz do sol se tornou apenas um fio no horizonte,reunimos os pertences essenciais para a travessia final;viajaríamos à noite até um vilarejo às margens do lago.Nosso vilarejo,nossas vidas.Toda a água que conseguimos carregar nos odres,um pouco de tabaco,a ração suficiente para a noite e um pouco para emergência e uma adaga para cada um caso não suportássemos a exaustão;foi tudo o que levamos.O resto compôs o funeral de nossos camelos.

No início caminhávamos céleres,estava claro que o caminho seria longo mas a proximidade de casa nos fazia esperançosos.Quando o deserto esfria e vem lamber os pés dos homens lentamente com seu vento,não há esperança de encontrar outras criaturas que não aquelas refugiadas abaixo das areias;assim pensávamos –e assim fomos ensinados a pensar- quando ouvimos o som de uma flauta acariciando o ar à nossa volta.Ao voltarmos nossas cabeças para atrás vimos um homem solitário que montava um camelo,ambos decorados com jade.O homem parecia não nos ver e, por um momento, cheguei a duvidar de minha sanidade.

A canção da flauta nos seguiu por um bom tempo,até que começamos a sentir o deserto roer nossos músculos.

O respeito do homem pelo deserto vem do medo.O sol faz das areias imensos castelos de brasa,e a morte rasteja como um réptil seco.O pavor da sede faz muitos escolherem outros caminhos,outras rotas, a fim de evitar a aridez das dunas.Mas a noite vem sorrateira,e transforma o vazio quente e seco em um antônimo enlouquecedor.O frio a princípio é um bálsamo contra o calor latejante do dia,mas logo a secura fria faz erodir os lábios,dedos e almas.

Havia um oásis a frente.Um último oásis,antes do fim.Nos ajoelhamos na praia minúscula e encaramos nossos reflexos: Homens rotos,fustigados pela ampulheta e sua areia,calados e cheios de cansaço.Um último pedaço de carne,um último gole do odre.

A última parte de nossa caminhada foi silenciosa,encontramos um cadáver no caminho e aquilo trancou cada um em seus pensamentos.Uma mulher loira,nova e aparentemente bonita crivada de flechas.Os rezzou não perdoam ninguém.O fim ocorreu como prevíamos:nos aproximamos da civilização e não sentimos nada.O deserto havia retirado o pouco de encanto que havia em nossos olhos.A noite os preencheu de mágoa.Homens vazios numa terra vazia.
P.A.

09/02/2010

Trilha sonora

Pulem! Disse um homem de colete verde-limão ao nos ver sem jeito com as catrácas. Elas estavam lacradas, os ponteiros já acusavam madrugada e o terminal estava vazio. Pulamos. Pura falta de sorte, talvez, se tivéssemos chegado dez minutos mais cedo... Quais eram nossas opções? Pegar um taxi, sobre duas ou quatro rodas ou voltar à pé: voltemos à pé, dissemos os dois com avareza escorrendo entre os lábios.

Partimos num corujão para a região central. Dentro do ônibus estavam os pobres-coitados trabalhadores e vagabundos sujos e suados e sonolentos. Fomos para o fundo, de onde podíamos ver a todos e saber quem queria nos olhar. Na manhã recente, a condução articulada em seu centro parecia cortar, como uma bala, o coágulo de ruas sem carros e barulhos típicos de urbe. O Corujão pára. Sobem quatro jovens etilistas, gozando dos prazeres de quem, por hora, os controla: Loucura. Descemos.

A rua era um ermo não-findouro aos olhos novatos, mas não para nós. A chuva derramava em gotas finas, nos forçando a procurar uma proteção para nossas cabeças. Um boné e um gorro depois, avistamos às margens da avenida um boteco. A entrada fedia urina velha, cerveja e cigarro barato. Pedimos ao caixa que nos alcançasse duas garrafas d'água e uma caixa de cigarros dos bons para sobrevivermos aos perigos da caminhada escura como durões.

A chuva ainda estava fresca sob o solo impermeável quando saímos do estabelecimento. Pegamos descendo em direção às nossas camas, norte da cidade. Ruas longas e herméticas formavam nosso ambiente, pelo menos enquanto a viagem durasse. Gritos e gargalhadas longínquas periódicamente invadiam nosso recorte da realidade, atrapalhando nossa conversa baixa.

A rodoviária não estava longe, uns 500 metros talvez. Som de violão começou a soar atrás de nós, equanto caminhávamos. A trilha sonora era uma coisa com que podíamos nos acostumar. Um som que acompanhava nossas vozes e que cantava o silêncio de nossas vírgulas e pontos finais. Era uma boa companhia o sujeito que caminhava calado, mas tocando, porém nem percebemos quando ele se foi.

Corpos em silhueta montavam a feira de domingo às luzes dos postes. Cruzamos as ferragens, as lonas e as formas humanas que dormiam ao léu para não ter que pagar diária de hotel. Avistamos então a rodoviária que agora é tambem centro de compras e entramos, sabendo que ela podia ser a nossa última parada com comida, água e sanitários.

Mãos foram lavadas, as garrafas foram reenchidas, mas faltava o que comer. Fomos até uma lanchonete que dava de frente para os terminais de embarque. Compramos um pacote de bolachas e dois cafés-pretos. Comemos, bebemos e partimos, tinhamos mais três ou quatros setores para cruzar.

Andamos por ruas cheias de botecos, cada um com sua música, importunando o sono da madrugada. Um violão baixo saía duma casa em direção da rua e fez-nos cantar "Nothing else matters". Chegamos ao nosso setor falando de assuntos como preconceitos e o tempo que a humanidade perde dando destaque e importância a diferênças ínfimas.

Sentamo-nos na sargeta que contornava o Corpo de Bombeiros e desenterramos as plantas-dos-pés do chão. Discutimos sobre amores, medicina, sociedade e viagens, dando o sentido mais completo que a frase "Open mind for a different view" pode ter. Um micro-ônibus passou por nós na rotatória e ao invés de seguir a avenida, retornou e parou em nossa frente: temos aqui duas garotas que fazem programa, é a primeira vez da loira. 100 reais, estão interessados? Aceleraram e rumaram para seu destino de prostituição, nos deixando a discutir o que mulheres com belezas como aquelas poderiam estar fazendo.

O tempo, como sempre chamamos o cigarro, estava acabando e nos pusemos a caminhar novamente. Babacas com suas caras inchadas, ensoberbecidos de futilidades, carregados de arrogância juvenil voavam em seus carros para a própria ou a morte de alguém. No canteiro central da avenida os viamos passar, segurando nossos últimos cigarros: o tempo desse tempo acabou. E cada um voltou à sua cama.

Por H. O.