09/02/2010

Trilha sonora

Pulem! Disse um homem de colete verde-limão ao nos ver sem jeito com as catrácas. Elas estavam lacradas, os ponteiros já acusavam madrugada e o terminal estava vazio. Pulamos. Pura falta de sorte, talvez, se tivéssemos chegado dez minutos mais cedo... Quais eram nossas opções? Pegar um taxi, sobre duas ou quatro rodas ou voltar à pé: voltemos à pé, dissemos os dois com avareza escorrendo entre os lábios.

Partimos num corujão para a região central. Dentro do ônibus estavam os pobres-coitados trabalhadores e vagabundos sujos e suados e sonolentos. Fomos para o fundo, de onde podíamos ver a todos e saber quem queria nos olhar. Na manhã recente, a condução articulada em seu centro parecia cortar, como uma bala, o coágulo de ruas sem carros e barulhos típicos de urbe. O Corujão pára. Sobem quatro jovens etilistas, gozando dos prazeres de quem, por hora, os controla: Loucura. Descemos.

A rua era um ermo não-findouro aos olhos novatos, mas não para nós. A chuva derramava em gotas finas, nos forçando a procurar uma proteção para nossas cabeças. Um boné e um gorro depois, avistamos às margens da avenida um boteco. A entrada fedia urina velha, cerveja e cigarro barato. Pedimos ao caixa que nos alcançasse duas garrafas d'água e uma caixa de cigarros dos bons para sobrevivermos aos perigos da caminhada escura como durões.

A chuva ainda estava fresca sob o solo impermeável quando saímos do estabelecimento. Pegamos descendo em direção às nossas camas, norte da cidade. Ruas longas e herméticas formavam nosso ambiente, pelo menos enquanto a viagem durasse. Gritos e gargalhadas longínquas periódicamente invadiam nosso recorte da realidade, atrapalhando nossa conversa baixa.

A rodoviária não estava longe, uns 500 metros talvez. Som de violão começou a soar atrás de nós, equanto caminhávamos. A trilha sonora era uma coisa com que podíamos nos acostumar. Um som que acompanhava nossas vozes e que cantava o silêncio de nossas vírgulas e pontos finais. Era uma boa companhia o sujeito que caminhava calado, mas tocando, porém nem percebemos quando ele se foi.

Corpos em silhueta montavam a feira de domingo às luzes dos postes. Cruzamos as ferragens, as lonas e as formas humanas que dormiam ao léu para não ter que pagar diária de hotel. Avistamos então a rodoviária que agora é tambem centro de compras e entramos, sabendo que ela podia ser a nossa última parada com comida, água e sanitários.

Mãos foram lavadas, as garrafas foram reenchidas, mas faltava o que comer. Fomos até uma lanchonete que dava de frente para os terminais de embarque. Compramos um pacote de bolachas e dois cafés-pretos. Comemos, bebemos e partimos, tinhamos mais três ou quatros setores para cruzar.

Andamos por ruas cheias de botecos, cada um com sua música, importunando o sono da madrugada. Um violão baixo saía duma casa em direção da rua e fez-nos cantar "Nothing else matters". Chegamos ao nosso setor falando de assuntos como preconceitos e o tempo que a humanidade perde dando destaque e importância a diferênças ínfimas.

Sentamo-nos na sargeta que contornava o Corpo de Bombeiros e desenterramos as plantas-dos-pés do chão. Discutimos sobre amores, medicina, sociedade e viagens, dando o sentido mais completo que a frase "Open mind for a different view" pode ter. Um micro-ônibus passou por nós na rotatória e ao invés de seguir a avenida, retornou e parou em nossa frente: temos aqui duas garotas que fazem programa, é a primeira vez da loira. 100 reais, estão interessados? Aceleraram e rumaram para seu destino de prostituição, nos deixando a discutir o que mulheres com belezas como aquelas poderiam estar fazendo.

O tempo, como sempre chamamos o cigarro, estava acabando e nos pusemos a caminhar novamente. Babacas com suas caras inchadas, ensoberbecidos de futilidades, carregados de arrogância juvenil voavam em seus carros para a própria ou a morte de alguém. No canteiro central da avenida os viamos passar, segurando nossos últimos cigarros: o tempo desse tempo acabou. E cada um voltou à sua cama.

Por H. O.

3 comentários:

  1. Massa, muito massa! (foram as primeiras palavras que soaram da minha boca ao ler o texto).
    Ficou bem escrito. A cronologia ficou certinha, fácil de acompanhar a leitura.
    Visto deste ângulo, a caminhada de 2:00 horas - que eu imaginei extremamente cansativa -, atravessando vários setores, foi ótima. Divertida!

    Beijo!

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  2. Ficou massa demais! Vc tem que passar mais textos desse tipo pra eu ler! o/

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