29/12/2009

O inventário.

Dor nas pernas, na planta dos pés e na cabeça. As costas parecem ter passado por um moedor e o nariz respira, por hora, caminhões de pó que nem os mais viciados ousariam cheirar. Inventário, mais um dia gasto diante de uma mesa improvisada de madeirite contando embalagens de remédio, separando-as por lote e informando ao programa de computador a sua quantidade. No galpão, filas de estantes enormes são dispostas à nossa esquerda e páletes portando as caixas são empilhados e armazenados dando-as volume assustador.

A função de 15 trabalhadores, incluindo a mim, é guiar, azarados, um porta-páletes através dos corredores murados por pilhas e pilhas de remédios, pegar um morro de caixas, levá-lo até meu terminal de contagem e começar o sofrimento.

Dois, quatro, seis lotes de remédios diferentes e milhares de unidades para contar, conferir e informar ao programa de computador sua data de validade, lote e quantidade, sendo que num pálete são empilhadas de 40 à 70 caixas e demora-se, em média, 20 minutos para registrar cada uma. Tudo isso para ganhar R$3,50 por hora, pagamento que faz um sujeito aguentar 15 horas diárias de segunda à segunda, com pausas apenas para o almoço e para a janta por duas semanas para tirar um extra e comprar um presente de natal pra sua família.

A empresa de contagem funciona das oito às vinte-e-três horas, instigando os trabalhadores a ficarem mais um pouco, ganharem mais. É desumano, apesar de eu estar lá por vontade própria. Quinze horas de trabalho me levam direto à realidade do início da revolução industrial, quando donos de empresas exploravam sem pudor seus empregados, fazendo-os trabalhar durante dezoito, vinte horas diárias para receber um salário miserável. Triste e, ao contrário de mim, eles não tinham escolha.

Optei por ficar e trabalhar por apenas um período, matutino ou noturno. O flagelo periódico parece mais suportável à mente desinteressada e robotizada e ao corpo que grita em estalos altos de mal-jeito a cada movimento forçado. Entre as centenas de caixas empilhadas na base de madeira, em pé, escolho uma e dou início à atividade. Depois de tê-la computado me abaixo e a deposito em outro pálete, vazio. Faço isso tantas vezes por dia que quando termino minha coluna falta piscar de felicidade. Entre os operários mais necessitados, a conversa e as risadas são raras, mas existem, para que não façam lama com suas lágrimas no chão imundo.

Em um mundo como esse é assim que aprendemos a dar valor nas coisas. Depois de passar por um dia como contador de inventário não se menospreza mais como antigamente. Quatro horas depois de ter começado, após o término do meu pálete, vou-me embora. Deixo os portões monitorados da empresa e os colegas que sofrem para sustentar suas famílias, para entrar em um ônibus lotado.

Catinga. Fragrâncias desconhecidas de fedor trescalam e embaçam as janelas da condução. É cheiro forte de gente que exerceu funções braçais o dia inteiro. Lembro-me de uma das últimas frases do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels “proletários de todos os países, uní-vos” e então percebo que não há classe mais unida que essa. Mas não, ainda, com os propósitos revolucionários contidos na bíblia do proletário, pois os rostos tanto dos jovens como dos velhos são de cansaço, impaciência e de falta de conhecimento, não sabem a força que tem a foice unida ao martelo. Trabalhadores por opção ou não, todos preferem ficar por uma hora dentro de um ônibus lotado, sujo e fedorento do que trabalhando mais um minuto entre caixas, ferramentas e linhas de produção. Abusados e com direitos tolhidos, persuadem a si mesmos para continuar, e continuam.

 

Por H.O.

Chocolate



É domingo. São sete horas da manhã. Pernas realizam movimentos com parcimônia e levantam-me. Roupas estão jogadas aqui e acolá, acusando minha rotina de todo sábado à tarde. Nesse dia, o sexo é uma prática inevitável e, na verdade, gostaria que fosse inevitavelmente diário.
            Cheiro de café invade minha residência. Sua fumaça sobe como cheiro de calmante incenso às minhas narinas. Ao lado, o modem da internet está com problemas; queimado; de novo. Mas e daí? Hoje não é dia de me contaminar com cheiros desgostosos.
            Cheguei em casa às treze e vinte. O sábado estava mais ensolarado que nunca. Brilhava acima e sobre os telhados; iluminando a todos, do mendigo mais imundo ao empresário mais higiênico. Não escolhe, ele não.
            A casa estava um lixo, como sempre. Moradia masculina que se preze tem pelo menos uma cueca pendurada num local que todos a possam admirar. Em minhas mãos pairavam outros dedos, sem pêlos, claros e delicados. Eram os dela e eu a puxava pra dentro.
            Roupas outras num átimo começaram a voar. Sutiã rodou no ar como um bumerangue que não sabe o caminho de voltar. As outras peças, minhas e dela, só caíram.
            As pernas dela se enroscaram, braços se prenderam e movimentos suados deram início à esperada tarde de sábado. A atividade fora tão intensa, a cama ficara tão ensopada que era impossível dormir, cabia ali só a tentativa de não afogar. Ficamos parados; olhando para o teto como se o patamar de prazer se fizesse "enxergável" além da alvenaria. Depois, virados em meia-lua, cheirei a nuca despelada, enquanto tentava pentear alguns fios de seu cabelo com barba grossa e mal-feita. A casa agora emanava perfume, suor, intensidade e mulher.
            "Vamos fazer brigadeiro?", disse a voz feminina ansiosa por glicose. Concordei com a cabeça e caminhamos como Adão e Eva pelo paraíso de cuecas e outras vestimentas entulhadas em direção à cozinha. Gás, pólvora queimada, fogo. A panela esquentou e quatro mãos se revezaram ao misturar os ingredientes do chocolate caseiro. Bolinhas de serotonina. Prazer, dessa vez de origem culinária. Comemos a sede e bebemos sua morte, água e brigadeiro, uma combinação incomparável.
            As pálpebras do dia se fecharam. O sol se foi e junto com ele foi ela. O gosto dela em minha boca não é tão veemente quanto agora é seu cheiro em minha casa. Sua essência faz-me lembrar e acreditar que é, sim, possível encarar a cruel realidade como se todos os dias tivessem tanto o sabor quanto o cheiro do delicioso chocolate de sábado. Obrigado.

Por H. O.


23/12/2009

Certezas

Voltou o
Rastro –
Fragmento
Esboçado de
Signos ordenados
Com fins líricos –
Da caneta-tinteiro
Que melhor encharca
De meu sangue
As vênulas dos papéis.
O rascunho
Alimenta apenas
A tão cara
Pele poética
Enquanto seu
Produto deve,
E vai, preencher
A mim.
A pleonastia
Da doença, que
Em linhas passadas
Descrevi,
Tomou-me o
Nanquim.
Como músculo
Deve a arte –
A minha – ser
Tratada.
Como força
Exercitada que
Merece descanso
Após tempos de
Suor trabalhado;
Para que tal
Massa, paciente,
Se enrijeça.
Os dias de
Nula brancura
São, enfim, maculados
Pelo rasgão – a cura –
Feito pela ferramenta
Do insistente
Escriba.

Por H. O.

Goiânia, 23 de dezembro de 2009 às 03:45

03/12/2009

Egoísmo

    Terminal da praça da Bíblia, que nome irônico para um terminal rodoviário. De fato é um local onde todas as religiões devem se tornar duvidosas. Pobreza, moléstias e pressa compõem o primeiro "ménage à trois" do desprazer. Duas blasfêmias brutas num só local. Uma em relação à bíblia e outra ao sexo.
     O caos é completo mesmo às vésperas do momento em que os ônibus param de circular. O movimento de pessoas é intenso. Mulheres, homens, trabalhadores, estudantes, pinguços e desocupados trafegam pelas vias imundas de fumaça, sujeira, descaso e falta de educação dos próprios usuários. Hoje não foi diferente, exceto por um acontecimento inusitado.
    Estava eu pairando sob a placa do ônibus mais medíocre, imagino, do planeta. Sentei-me no chão, pois o cansaço do momento dispensava qualquer luxo.Todas as linhas de ônibus iam e vinham numa velocidade impressionante, só a que eu queria que não.
    A dor que freqüentou minha cabeça durante todo o dia começou a incomodar. O som de gente comendo, o cheiro de suor e a vontade de estar em casa fez com que a cefaléia criasse pernas e com elas sapateasse em meu cérebro. A paciência de Lenine não cabe àquele lugar.
    De repente, quatro moleques, um mais magro que o outro, trajando roupas largas para seus corpos de frango, chamaram minha atenção. Rumaram para o meu ponto 263 - PC Campus - Itatiaia - Praça da Bíblia. Seus rostos emitiam confusão, não do tipo que causa dúvida, mas conflito. Encaravam um rapaz também franzino vestido como um estudante adolescente. Quando finalmente o alcançaram, o folgado que tomava a frente e que parecia liderar o grupo disse em voz alta "você é de galera, né?" o vitimado tentou a diplomacia dizendo que tinham-no confundido com outra pessoa.
    Eles saíram, melhor, sublimaram. Não os vi por um bom tempo, até que o dois-meia-três chegou, parou e as pessoas, como gado no tronco, subiam na última condução do dia.
    Depois de todos nós condenados nos "acomodarmos" nos acentos limpos como a cara de quem os limpa, os briguentos finalmente apareceram, foram os últimos a entrar e o fizeram com o maior barulho possível. Talvez acharam que assim provocariam mais medo ou qualquer outra sensação tanto no indivíduo desafortunado quanto no restante dos passageiros, um fracasso só.
    Objetivos, partiram para resolver a pendência, coisa de gangue, pois a vítima foi acusada de ter "quebrado" um "amigo" dos frangotes. Pessoas que estavam no fundo do ônibus deixaram seus lugares para se livrarem de qualquer atitude desagradável que os "intimidadores" poderiam fazer. Permaneci quieto, de butucas e ouvidos atentos, tentando entender algo do que diziam.
    Ao som do motor obsoleto e mascarado por lataria de "transporte de primeiro mundo", as vozes dos guris pareciam meros sussurros aborrecidos. Tentei então observar sua linguagem gestual. Ameaçavam o coitado o tempo todo. Nesse instante, virei pra frente e fiquei imaginando o que faria se eu fosse o dono dessa situação. Ser ameaçado por quatro capas-de-gaita não deve ser tão aterrador, então, a única conclusão que cheguei é que iria tomar um remédio que fizesse a cefaléia sucumbir.
    Quando voltei à realidade, o azarado tirava com face triste seus calçados e sua blusa de frio. Um assalto num ônibus lotado; mas que ridículo. Em troca de seus bens, deram-lhe um soco barulhento e desceram do condução às gargalhadas, mas que moleques podres. O laço faz cada vez mais falta na educação das crianças hoje em dia.
    Pontos e curvas depois, desci do caixote automotor e comecei a refletir sobre o ocorrido: gente, não, coisas desse tipo deveriam sofrer. Nossa segurança "garantida" por impostos pagos a cada metro cúbico de ar respirado não depende somente de dinheiro, também da boa-vontade dos guardas, um mais barrigudo que o outro. Isso fez com que eu me questionasse duplamente: fiz certo em votar "não" para que o porte de armas-de-fogo não fosse legalizado? Será que o indivíduo mereceu? Para ambas as perguntas, tomara que sim. Ah, quer saber? Foda-se. Foi por pensar tanto que perdi a chance de perguntá-los se tinham um comprimido para dor-de-cabeça.

Por H. O.